SOCIALISMO: Um Projecto de Sociedade

Miguel Judas

PARTE II ALGUMAS QUESTÕES POLÉMICAS

CAPÍTULO 3

Porquê não "Anti-Capitalista"? O Capitalismo constitui um modelo histórico de sociedade humana assente no modo de produção capitalista. na produção social da sua vida, os homens estabelecem determinadas relações necessárias e independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção forma a estrutura económica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral. (Karl Marx, "Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política", 1859) Tendo "nascido" como um modo de produção com características e potencialidades superiores aos modos de produção anteriores, o Capitalismo veio a constituir-se, mediante a hegemonia política e cultural burguesa, num modelo de sociedade o qual, ele próprio, foi metamorfoseando algumas das suas características em função do processo de desenvolvimento tecnológico-produtivo, da sua expansão socio-territorial e do nível de poder impositivo que foi tendo que empregar para submeter as populações que resistem à dominação e à exploração. Assim, de um sistema originariamente libertador, evoluiu, à medida que a burguesia se foi separando das massas trabalhadoras, se tornou força social dominante e ficou cada vez mais desvinculada das reais necessidades sociais, num sistema progressivamente opressivo, parasitário e reaccionário ao desenvolvimento, gerador de um crescente espírito de revolta em todos os povos do mundo. Esse espírito de "revolta" tem-se materializado historicamente de múltiplas formas, desde a espontânea e primitiva destruição de máquinas e produtos e variadas acções de "rebeldia" popular, até às lutas reivindicativas de massas por uma menos injusta repartição dos resultados da produção e, finalmente, às lutas revolucionárias de libertação nacional e de substituição do capitalismo por um modelo de sociedade mais avançado, o Socialismo. Todas essas formas de luta que, pelo simples facto de serem conduzidas contra um opositor, poderão parecer revelar um carácter anti, da realidade são lutas por objectivos mais ou menos bem definidos. A proclamação do anti-capitalismo como palavra de ordem poderá ser compreendida enquanto desabafo moral momentâneo, como uma manifestação de "revolta", mas que não corresponde a qualquer objectivo positivo do interesse real das massas trabalhadoras nem indica a alternativa que estas necessitam para se poderem mobilizar de forma consequente. Se bem que a Moral seja um elemento importante para a definição do posicionamento de cada um perante os problemas sociais e um factor relevante na formação das condições subjectivas para/e da Revolução, abordar esta a partir de uma posição predominantemente moralista conduz, inevitavelmente, à tomada de decisões gravosas para a sociedade e, consequentemente, ao fracasso.

O "anti-capitalismo" constitui uma dessas atitudes moralistas que, tendo a sua justificação no sentido de aversão a todas as perversões humanas, sociais e ambientais geradas pelo modelo de sociedade capitalista, especialmente na sua fase decadente, não reconhece o que o Capitalismo hegemónico representou enquanto avanço histórico da sociedade humana, do mesmo modo como não reconhece que o modo de produção capitalista, quando deixar de ser o modelo hegemónico, ainda vai ter de representar no futuro, em maior ou menor escala, consoante os sectores de actividade produtiva e o estado de desenvolvimento de cada sociedade nacional, um papel positivo no avanço das sociedades humanas. O "anti-capitalismo" nega o fluxo dialéctico da história, não entende que na mesma época histórica e na mesma sociedade possam coexistir vários modelos de produção, desde os mais antigos aos mais "futuristas", como Marx no seu tempo revelou e como se comprova na actualidade, em todas as sociedades humanas existentes. O Capitalismo constituiu o maior salto civilizacional e humanista que a Humanidade já deu em toda a sua história até ao presente. Só quem não conheça a história das civilizações mais antigas e dos modos de produção anteriores ao Capitalismo é que poderá, erradamente, caracterizar o Capitalismo como algo retrógrado. Não foi por acaso que Marx e Engels denominavam como bárbaros os sistemas sociais antigos, como reflecte o artigo de Marx de 1853 sobre A Dominação Britânica na Índia: Decorridos tempos imemoriais, não existiam na Ásia senão três departamentos administrativos: o das Finanças, ou pilhagem do interior; o da Guerra, ou pilhagem do exterior; e, enfim, o departamento dos Trabalhos Públicos... Ora, os Ingleses nas Índias Orientais aceitaram dos seus precedentes os departamentos das Finanças e da Guerra, mas eles negligenciaram inteiramente o dos Trabalhos Públicos. Daí a deterioração de uma agricultura incapaz de se desenvolver segundo o princípio britânico da livre concorrência, do "laissez faire, laissez aller"... Ora, por mais triste que seja do ponto de vista dos sentimentos humanos ver essas miríades de organizações sociais patriarcais, inofensivas e laboriosas dissolverem-se, desagregarem-se nos seus elementos constitutivos e serem reduzidas à miséria, e os seus membros perderem ao mesmo tempo a sua antiga forma de civilização e os seus meios de subsistência tradicionais, não devemos esquecer que essas comunidades "villageoisies" idílicas, malgrado o seu aspecto inofensivo, foram sempre uma fundação sólida do despotismo oriental, que elas retêm a razão humana num quadro extremamente estreito, fazendo dela um instrumento dócil da superstição e a escrava de regras admitidas, esvaziando-a de toda a grandeza e de toda a força histórica. Não devemos esquecer os bárbaros que, apegados egoisticamente ao seu miserável lote de terra, observam com calma a ruína dos impérios, as crueldades sem nome, o massacre da população das grandes cidades, não lhes dedicando mais atenção do que aos fenómenos naturais, sendo eles mesmos vítimas de todo o agressor que se dignasse a notá-los. Não devemos esquecer que a vida vegetativa, estagnante, indigna, que esse género de existência passiva desencadeia, por outra parte e como contragolpe, forças de destruição cegas e selvagens, fazendo da morte um rito religioso no Hindustão. Não devemos esquecer que essas pequenas comunidades carregavam a marca infame das castas e da escravidão, que elas submetiam o homem a circunstâncias exteriores em lugar de fazê-lo rei das circunstâncias, que elas faziam de um estado social em desenvolvimento espontâneo uma fatalidade toda poderosa, origem de um culto grosseiro da natureza cujo carácter degradante se traduzia no facto de que o homem, mestre da natureza, caia de joelhos e adorava Hanumán, o macaco, e Sabbala, a vaca. É verdade que a Inglaterra, ao provocar uma revolução social no Hindustão, era guiada pelos interesses mais abjectos e agia de uma maneira estúpida para atingir os seus objectivos. Mas a questão não é essa. Trata-se de saber se a humanidade pode cumprir o seu destino sem uma revolução fundamental na situação social da Ásia. Senão, quaisquer que fossem os crimes da Inglaterra, ela foi um instrumento da História ao provocar esta revolução. Para além dos extraordinários avanços na ciência e na tecnologia, da instituição jurídica dos "direitos humanos" antes arbitrária, violenta e sistematicamente negados e nas condições materiais de vida, a época do Capitalismo traduziu-se num estrondoso êxito biológico da espécie humana, a qual, sob o impulso da Revolução Agrícola, havia passado de somente 50 milhões no ano 1000 AC para 425 milhões em 1500 DC e que, desde o início da Revolução Industrial, em meados do século XVIII, até ao presente, passou de 791 milhões para os cerca 6.900 milhões actuais, com expectativas de vida muito mais longas que nos períodos anteriores. A burguesia, durante o seu domínio de classe, apenas secular, criou forças produtivas mais numerosas e mais colossais que todas as gerações passadas em conjunto. A subjugação das forças da natureza, as máquinas; a aplicação da química à indústria e à agricultura, a navegação a vapor, os caminhos de ferro, o telégrafo eléctrico, a exploração de continentes inteiros, a canalização dos rios, populações inteiras brotando na terra como por encanto - que século anterior teria suspeitado que semelhantes forças produtivas estivessem adormecidas no seio do trabalho social? (Karl Marx – Manifesto Comunista 1848) Este êxito, porém, não foi isento de custos, como aliás aconteceu em outras fases anteriores do desenvolvimento da Humanidade. Não é necessário recordá-los no âmbito deste trabalho, pois eles estão presentes na realidade física e psicológica dos muitos milhões de seres humanos que sofrem diariamente a pobreza, a exploração, a humilhação e a insegurança perante o dia seguinte, e que também se encontram presentes em todos aqueles que, tendo embora relativamente assegurado o seu "pão diário", sentem a sua dignidade humana e a sua segurança afectada pela condição dos primeiros.

Esta posição Moral de Revolta e de Solidariedade é tanto mais justificada quanto se conhecem tanto o beco sem saída em que o actual sistema socioeconómico está a colocar a Humanidade, como os potenciais de Conhecimento, Tecnológicos, Organizacionais e de Inteligências e Vontades de que esta dispõe para superar positivamente a actual e perigosa situação. Por essa razão uma parte cada vez mais significativa da Humanidade considera que o Capitalismo deixou de constituir um sistema socioeconómico que possibilita o desenvolvimento geral da sociedade humana para se constituir num factor de condicionamento e entrave a esse desenvolvimento, e luta hoje por um novo sistema social mais adequado às necessidades do nosso tempo. Apesar do Capitalismo, enquanto modelo de sociedade humana (económico, político, social e cultural) dar mostras de se encontrar hoje a caminho do esgotamento enquanto sistema hegemónico à escala mundial, criando mais e mais graves problemas sociais e ambientais do que aqueles que resolve e estando a encaminhar a Humanidade para situações potencialmente catastróficas, o modo de produção baseado no estímulo individual pelo lucro e numa ordem hierárquica rigorosa no plano empresarial continua válido e como melhor opção em muitos domínios da produção material e dos serviços, tanto em países desenvolvidos como, especialmente, em muitos países menos desenvolvidos. O exemplo de Cuba, onde foi implantado um modelo Socialista profundamente humanista, democrático e igualitário, mostra bem que, independentemente do bloqueio económico norte-americano e da pressão subversiva a que tem sido continuadamente submetido, esses factores positivos não foram suficientes para mobilizar os cidadãos para o óptimo aproveitamento dos recursos naturais do país nem para a obtenção das mais elevadas produtividades do trabalho social. Por isso, o respectivo governo procura agora proceder a reformas no sistema, no sentido da restauração parcial das relações capitalistas de produção, que permitam mobilizar os cidadãos, através da restauração do estímulo individual pelo lucro e da auto-responsabilização pelos seus padrões materiais de vida. Muitos outros países subdesenvolvidos, apesar de terem conquistado a sua independência política dos antigos impérios coloniais, mantêm-se hoje numa situação de tão grande dependência política do imperialismo e de atraso económico e social que só revoluções libertadoras democráticas que favoreçam o rápido desenvolvimento das forças produtivas poderão superar. Mesmo que essas revoluções libertadoras sejam desencadeadas com consignas socialistas de justiça social e sejam promovidas por revolucionários socialistas, acabarão por ter de desenvolver um poderoso e hegemónico sector capitalista e a correspondente burguesia nacional para vencer os seus atrasos seculares. Por isso, a luta pelo Socialismo (ou pela Sociedade do Viver Bem) não deverá adoptar o "anti-capitalismo" como palavra de ordem, pelas mesmas razões porque não deverá adoptar o "anti-caça e recolecção", o "anti-religião" ou qualquer outro "anti" relativamente a qualquer aspecto da vida social dos povos a que estes reconheçam validade na resolução das suas necessidades materiais ou espirituais.

 

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